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Linguagem neutra: qual é o @ da questão?

Alvo de diversas polêmicas e discussões, a linguagem neutra novamente está sendo debatida dentro das esferas de poder, agora no STF. Porém, é interessante refletirmos o porquê desta discussão ser tão interessante, existirem defensores tão ferrenhos de ambos os lados e, principalmente, se existem realmente apenas dois lados nesta discussão.

É importante entendermos primeiro qual é o papel da linguagem na vida do ser humano. As principais teorias evolucionistas apontam que a linguagem se tornou necessária no momento que as espécies iniciaram a viver em grupos, pois elas precisavam forma de comunicação entre os membros destes grupos. Alguns escritores inclusive trazem uma curiosidade interessante sobre esse ponto: Yuval Harari, em seu livro Sapiens, defende que criamos nossa elaborada linguagem como forma de fazer fofoca, mais precisamente para saber se podemos ou não confiar nos outros.

E foi justamente a criação da linguagem que auxiliou a espécie humana a desenvolver um cérebro tão sofisticado. É difícil de imaginar isso hoje, porém, antes do desenvolvimento da linguagem, não tínhamos a capacidade de nos referirmos a algo que não estava presente. O momento no qual uma palavra foi desenvolvida para simbolizar algo que não estava ali, pudemos começar a representar coisas e, assim, criarmos conceitos como passado e futuro, desenvolvendo a imaginação e moldando o mundo ao nosso redor. Comoo cérebro é o órgão que mais gasta energia no corpo humano, temos uma tendência a criar padrões ou categorias para explicar o mundo ao nosso redor. Essas categorias facilitam o trabalho de entender o mundo, porém, podem dificultar nosso processo de uma análise mais detalhada e de diferenciar características importantes.

Vamos pensar em um exemplo prático: a maioria das pessoas quando olha para o céu e vê uma nuvem, não reflete sobre ela, apenas a caracteriza como nuvem. Talvez se ela estiver escura possa indicar chuva, ou não, mas, no geral, não temos a capacidade de diferenciá-la muito bem. Agora imagine um meteorologista, ele possui o conhecimento necessário para diferenciar uma cumulus de uma stratus. Ele consegue, analisando o conhecimento que adquiriu a partir da linguagem, saber se fará sol ou se uma tempestade está a caminho. E ele possuir as palavras para representar cada diferente tipo de nuvem o ajuda não só a saber que existem diferenças, como o ajuda a comunicar estas diferenças ao mundo. Logo, quanto mais palavras temos para representar e descrever algo, maior a nossa capacidade de entender o mundo, mas mais complexo será o idioma.

Com o passar do tempo e a complexificação de nossos idiomas e culturas, foi necessário se desenvolver regras e estruturas como forma de padronizarmos como nos referimos a este mundo externo que queremos simbolizar. E assim, criamos regras gramaticais e ortográficas como forma de podermos passar adiante a estrutura linguística.

Mas voltando a discussão sobre a linguagem neutra, é importante entendermos que essa questão traz pontos bastante importantes a serem levantados e eles acabam sendo até mais importantes que o uso ou não das regras em si.

Para começar, trazer esse assunto a tona nos possibilita olhar para uma parcela da população que durante séculos foi invisibilizada em nossa linguagem dicotômica e, consequentemente, em nossos cérebros. Quando tentamos dividir o mundo em gênero “masculino” e “feminino”, acabamos obrigando muitas pessoas a se encaixarem em caixinhas nas quais não cabem. No momento que discutimos se devemos ou não começar a usar “e”, “x” ou “@” e construir um gênero neutro na língua portuguesa, o que estamos fazendo é dizer para essas pessoas: sabemos que vocês existem.

Óbvio que esse tipo de discussão pode gerar um grande problema linguístico. Afinal, usamos a linguagem, principalmente a escrita, como forma de nos comunicarmos, tanto formal quanto informalmente. Partindo desse pressuposto, é importante termos regras para uma linguagem culta. E estas mudanças são vistas por muitos como uma afronta à linguagem culta, uma aberração linguística. Mas aí temos outra questão fundamental: a língua deve ser algo estático ou vivo? Não escrevemos mais farmácia com PH e nem colocamos acento agudo na palavra ideia. Além disso, quando a língua portuguesa foi criada, não tínhamos coisas como computador, internet, fotografia e rock’n’roll. Mudanças são sempre difíceis, mas com a evolução das pessoas e da cultura, a evolução da língua portuguesa se tornou necessária. Talvez o ponto seja: como desenvolver isso de forma a respeitar as regras e possibilitar que as pessoas possam sentir-se representadas pelo próprio idioma?

Mas acho que é importante trazer um terceiro ponto a essa discussão, que é o da esfera política. É interessante refletirmos se o interesse político por trás da não aceitação da linguagem neutra esta realmente ligado a um amor incondicional à língua portuguesa ou a uma tentativa de invisibilizar pessoas que não se encaixam nos padrões ditos como normais na cultura brasileira. O uso desta discussão como uma arma ideológica pode ser bastante danoso, tanto para a discussão em si quanto para a população invisibilizada, além de servir de palanque para políticos que possuem, em sua agenda, estratégias focadas na diminuição de direitos adquiridos à base de muita luta.


S.P. Anderson é psicólogo clínico, escritor, instrutor de mindfulness e doutor em psicologia. Autor dos livros “O Zeitgeist: Crônicas do Insconsciente Coletivo” e “Sugar”. Atualmente está trabalhando no projeto de crônicas “Museu da Vergonha Brasileira”, o qual tenta trazer atenção para fatos históricos que não devem ser esquecidos. Seu trabalho pode ser encontrado em http://instagram.com/escritor.spanderson

S. P. Anderson

 

 

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