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"Muitas vezes me peguei rindo ou chorando daquilo que escrevi": entrevista com a escritora Jane Tutikian

Jane Tutikian, escritora renomada e professora do módulo de Narrativa Longa do Curso de Formação de Escritores da Metamorfose, além de colecionar importantes títulos, tem uma trajetória rica em emperiências no mundo da literatura. Nesta entrevista, Jane compartilha generosamente um pouco do caminho que trilhou até aqui.

Jane Tutikian é portoalegrense, escreveu 23 livros, entre contos, novelas e novelas infanto-juvenis. Teve dois livros adaptados para o teatro e recebeu alguns dos prêmios mais importantes da literatura brasileira, como Prêmio Jabuti, Açorianos, Tibicuera etc. Participou de várias antologias nacionais e internacionais. Organizou mais de 20 livros, sendo responsável pelas obras completas de Fernando Pessoa, editada pela L&PM. É membro da Academia Literária Feminina, da Academia Rio-Grandense de Letras e do Pen Clube Português. Foi patrona de muitas Feiras do Livro do interior do Rio Grande do Sul e patrona da 57ª Feira do Livro de Porto Alegre. É professora titular da UFRGS, tendo sido Diretora do Instituto de Letras e Vice-Reitora.



Mesmo sabendo que cada escritor segue um passo a passo bem particular para escrever narrativas longas — uns mais propensos ao planejamento, outros mais inclinados à inspiração como guia —, você acredita que existam práticas que sejam úteis para todos os processos? Se sim, quais são elas?

Evidentemente que cada escritor tem o seu processo de criação e que há uma quantidade interessante de processos. Para mim, o mais genial era o que a Clarice Lispector usava. Escrevia em pedacinhos de papel e, quando tinha uma estrutura para o texto, buscava esses escritos e montava como uma espécie de quebra cabeça. Trago o exemplo da Clarice Lispector, porque, aparentemente, é apenas inspiração, mas é mais do que isso. O projeto está lá, desde a estrutura do texto, e a própria costura dos diferentes fragmentos também ultrapassa a inspiração. O que eu quero dizer é que sempre há um projeto, ainda que mental. Entretanto, pergunto: Erico Veríssimo teria conseguido criar a trilogia O tempo e o vento sem um planejamento? E ele os fazia detalhados, com desenhos de Santa Fé e das personagens. Poderia citar vários outros autores. A verdade é que as regras do romance jamais foram estabelecidas, o que se exige dele é a coerência interna, e o planejamento é uma forma de se obter uma garantia dessa coerência. Há ainda que acrescentar que a técnica bem usada jamais matou a inspiração, ela contribuiu sempre e muito com a criatividade. A técnica é capaz de abrir muitas possibilidades antes não pensadas, e tudo parte do planejamento.

Você pode resumir o seu processo de escrita de narrativas longas? Desde a concepção da ideia até a estruturação do livro.

Meu processo de criação é o mais simples, talvez, que existe. Penso que a origem está nos pedaços de vida e de realidade que, de alguma forma, me tocaram ou positiva ou negativamente. Em um determinado momento, esses pedaços de vida ganham forma e se transformam em uma intriga. Não há narrativa longa sem uma ou mais, normalmente mais, intrigas. É onde tudo começa. Tendo a intriga inicial, as personagens aparecem quase que espontaneamente e eu as vejo como são e com seus nomes. A partir daí, passo muito tempo com isso na cabeça, meu processo mental é longo até o momento de sentar e escrever. Não necessito de lugar especial para a escrita. Adoro escrever a lápis. O som sutil do lápis arranhando o papel me estimula. Parto então para o projeto, onde terminam aparecendo personagens e situações em que ainda não havia pensado. Em se tratando das personagens, para que não prejudiquem a coerência, faço uma grande árvore onde os situo em relação ao núcleo da narrativa. Planejamento concluído, passo a dar vida ao texto, mas, por alguma razão, só sei começar a escrever quando tenho a última frase, que, na maior parte das vezes, não será efetivamente a última. Assim como o planejamento sofre desvios de rota de acordo com a demanda das próprias personagens. É autonomia que carregam consigo, quando o próprio texto me surpreende. Por essa capacidade do texto, muitas vezes me peguei rindo ou chorando daquilo que escrevi. Nessas ocasiões, escrevo diariamente, e para o texto apenas quando sei como vou continuar o dia seguinte. Se surge alguma situação complexa, não o abandono, isso faz com que eu escreva por muitas horas seguidas e descarte o não aproveitado.

A maior parte das suas obras é voltada para o público infantojuvenil. Como foi essa escolha? Em quem você se inspira e qual é a missão que você se propõe através de suas obras?

Pois é. Entrei quase que sem querer na literatura infantojuvenil. Na década de 80, ainda não havia esse tipo de literatura para jovens. Eles liam ou livros muito adultos ou livros infantis. Foi nessa década que as editoras descobriram um grande nicho de mercado. Eu já havia enviado para a editora Atual, na época, os originais de A cor azul. Tive a sorte de estar com os originais certos na hora certa. Paulo Condini, que era o editor, decidiu lançar a série Morena com um escritor de cada região do Brasil, e o meu livro foi escolhido pela região sul. O livro fez muito sucesso,inclusive, ganhou o Prêmio jabuti. As outras editoras como a Ática, por exemplo, também lançaram suas coleções para jovens. Nesse sentido, a Cor do azul é um dos livros pioneiros dessa literatura no nosso país. Isso não quer dizer que, na época, eu continuaria escrevendo novelas para jovens leitores. Havia um certo preconceito contra esse tipo de literatura, como se fosse uma literatura menor. Lembro, na sessão de autógrafos, de um escritor já renomado que me falou o seguinte: “mas tu não vais entrar nessa, agora, né?” Olhei para ele e pensei que não era capaz de entender que a entrega do escritor para o texto juvenil é exatamente a mesma de um texto para adultos. Eu não faço qualquer concessão por ser um livro dirigido a outra faixa etária.

Escrevi um livro de contos para adultos e, numa terça-feira, encontrei com o querido Carlos Urbim, que, na época, coordenava o caderno Zé H infantil, e ele me pediu um texto juvenil. Era para mandar um no dia seguinte. No caminho para casa, vi alguns meninos jogando bola num campinho e, ao chegar em casa, eu já tinha um texto na cabeça, que era Um time muito especial. Escrevi, mandei, foi publicado e deu origem ao livro com o mesmo título. Também fez muito sucesso, ganhou alguns prêmios importantes como o Tibicuera, livro do ano. Havia me divertido e me emocionado muito enquanto escrevia o livro. Foi o que me fez decidir escrever também para os jovens leitores. Entretanto, para escrever para eles, precisava me aproximar e conhecê-los melhor, com suas alegrias e com seus problemas. Intensifiquei as palestras nas escolas, muito mais para ouvir deles do que para falar. E lembro que um livro intitulado Fica ficando que foi sugerido e muito discutido por eles. Eles inspiram e, ao mesmo tempo, são os meus críticos. Tenho um banco de adolescentes no computador. Mando para eles os originais e eles me dizem o que acharam. Só depois disso envio para o editor.

Não acredito que um livro juvenil tenha de ter uma grande missão ou uma mensagem. Escrevo para que eles tenham prazer na leitura. É para isso que a literatura serve. Cada um lê e tira do livro aquilo que, de alguma forma, está em consonância com o reconhecimento de si próprio, com sua vida, com sua a história, com a sua sensibilidade. O leitor, consequentemente, não é sempre o mesmo. Entretanto, como já dizia Said, nenhum livro é inocente…

Você tem uma carreira acadêmica, é professora e está dando aulas na Metamorfose de Narrativa Longa. Como é para você este processo de ensinar em contraponto a escrever, uma prática que costuma ser mais solitária e individual?

Confesso que, no início, a professora cerceava a liberdade da escritora no sentido de ter sempre que explicar para mim mesma por que escrever assim. Foi uma luta difícil entre a professora e a escritora. Somente com um certo amadurecimento, consegui me livrar disso. São dois imensos prazeres totalmente diferentes. Quanto à docência, tanto na universidade quanto na Metamorfose, me faz lembrar Umberto Eco, quando dizia que entregava aos alunos seu conhecimento e sua experiência, recebia deles sua juventude e sua curiosidade. Assim é e segue sendo. Quanto a escrever, é sempre um desafio e um jogo bonito de memória, observação e imaginação. Convivo tanto com as minhas personagens, entro tanto nas suas vidas, que, embora seja uma prática solitária, não há solidão. Escrever é minha melhor maneira de estar entre as pessoas. A maior força de um escritor, seu próprio sentido no mundo é ser escritor.

Você já ganhou diversos prêmios importantes, como o Jabuti e o Açorianos. Como você vê os concursos literários na sua trajetória e como se organiza para participar deles? Fale um pouco sobre como lidar com as expectativas e particularidades deste universo.

Eu sempre recomendo aos escritores iniciantes que participem de concursos literários, sobretudo aqueles que oferecem como prêmio a publicação ou o dinheiro suficiente para publicar um livro. No Brasil, há ainda um grande problema para publicação de escritores iniciantes. Para publicar, é preciso ter nome e para ter nome é preciso ter publicado pelo menos um livro. Nesse sentido, me parece um concurso literário uma boa opção para abrir a porta ao escritor que está chegando. Não se engane, entretanto, achando que terá muita visibilidade. Ao contrário, concurso divulga muito mais seu patrocinador do que seu ganhador. Ainda assim, é uma porta viável e importante. Quanto aos prêmios literários, evidentemente que honram e trazem orgulho para o seus ganhadores, mas não são determinantes na carreira de escritor. O escritor não escreve nem deve escrever por prêmios. Ele escreve e deve escrever porque, eu penso em Sartre, “a literatura é uma grande troca de liberdade entre o escritor e o leitor, é uma construtora de pontes, é um espelho crítico que se coloca à nossa frente e, sobretudo, é prazer”.

Você tem uma participação considerável em eventos relacionados à literatura, tendo sido, inclusive, patrona de inúmeras Feiras do Livro, incluindo a de Porto Alegre. Como você vê essas participações na sua trajetória?

Veja bem, vivemos num país que, infelizmente, cada vez menos valoriza e investe na cultura, nas artes, na literatura (neste momento, inclui-se aqui a ciência), além de dificultar de todas as maneiras que a obra chegue ao leitor, prova está na taxação do livro. Muito mais fácil manipular um povo que não pense do que o contrário. Se antes participar dos eventos era um prazer, hoje, todos os escritores, creio eu, devem participar o máximo possível das discussões sobre livro, literatura, cultura e artes, ir às feiras. Como o cantor, parafraseio o grande Milton Nascimento, todo o escritor e seus livros devem estar aonde o povo está. É nossa luta, é nossa contribuição à contemporaneidade e às futuras gerações. As feiras de livro, todas elas, são um espaço muito democrático, por onde passam as diversas tribos, lá o escritor precisa estar mais presente. Tenho perguntado aos escritores que encontro se a literatura salva. Todos, sem exceção, disseram que acreditam nisso. Nélida Piñon foi além ao afirmar que escrever é nosso compromisso civilizatório. Eu assino embaixo.

Considerando sua participação em associações e eventos do setor literário, você acredita que, para um escritor construir uma trajetória parecida, ele deve planejar esses passos ou é uma consequência de um trabalho focado e dedicado na literatura?

Como disse, o grande trabalho do escritor é escrever. As consequências da sua carreira literária virão deste trabalho e não de outro. Entretanto, como disse na pergunta anterior, hoje, é preciso lutar pelo livro, pela literatura, pela cultura, pelas artes. O escritor não pode se eximir desta luta e ela exige sua presença e participação em associações e eventos do setores literário, cultural e artístico.

Quais são seus autores e obras que mais te inspiram?

De uma forma geral, sou influenciada por todos os livros que li e que estiveram na minha formação. Os que leio e me encantam. O escritor não se faz sozinho. Há muito que não existe mais a famosa torre de marfim. É natural, entretanto, que a minha maior influência venha dos escritores e obras intimistas (Caio Fernando Abreu, Clarice Lispector, Virgínia Woolf, Rachel Jardim, Marie Cardinal…) uma vez que é esta a vertente do meu fazer literário. Tenho dito reiteradamente que não sou uma contadora de histórias, sou antes uma contadora de emoções.

Dê 3 dicas práticas para quem está começando a se aventurar no gênero de narrativas longas. O que funciona para você que gostaria de passar adiante?

1. Faça uma sinopse do que vai ser a narrativa.

2. Faça o planejamento da narrativa com base na sinopse. Divida em capítulos e escreva brevemente o que tratará em cada capítulo.

3. Faça uma ficha com características físicas e psicológicas das personagens.

Eu diria que é um bom começo! E é importante ter em mente o que disse Anaïs Nin: “Foi pela escrita que me ensinei a falar com os outros... Gostaria de afastar de todos os sentimentos de que escrever é algo que apenas as pessoas talentosas fazem. Não são só as pessoas com dons invulgares que narram sua vida de maneira interessante."

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